segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Sobrecarga de Trabalho na Aviação Militar - Reflexão

     Numa bela manhã, em fevereiro de 1979, na enseada Batista das Neves, em Angra dos Reis, ao me apresentar para o período de adaptação no Colégio Naval, tive o primeiro contato com um princípio basilar da vida militar: fui informado eu só podia falar “Sim senhor”, “Não senhor” e “Quero ir de baixa”.
     Ao longo da carreira, fui apresentado a outras obrasprimas da argumentação militar, como por exemplo: “Não houve tempo para completar a tarefa? Deu tempo para dormir? Deu tempo para comer? Então você teve tempo de sobra!”.

     Ironias à parte, o fato é que, antes de sermos aviadores, já éramos militares, e a simples idéia de deixarmos de cumprir alguma missão devido ao cansaço, nos parece uma completa heresia.
Para essa atitude, também contribui a carga semântica da expressão “sobrecarga de trabalho”, forma como normalmente é traduzida para o português a expressão “task overload”. A tradução mais precisa seria “sobrecarga de tarefas”, expressão que limita a sobrecarga a um contexto mais específico. A palavra “trabalho” tem uma forte conotação moral, associada à honradez e à firmeza de caráter. Dizer-se que alguém é “trabalhador” soa como um elogio, independente da natureza desse trabalho. Isso torna ainda mais difícil, para o aviador militar, principalmente no início da carreira, informar seu superior hierárquico quanto a uma possível queda no seu desempenho, decorrente da sobrecarga de trabalho.
     Esse, porém, seria o menor dos problemas, se pudéssemos ter a certeza de que todo indivíduo fosse capaz de perceber seu estado de fadiga. Inúmeros precedentes conhecidos mostram que, na prática, isso raramente ocorre.
     Diferentemente do cansaço momentâneo, devido a uma noite mal dormida ou a um esforço físico extenuante, a fadiga é o resultado de um processo de sobrecarga continuada, que irá, lentamente, degradar o desempenho do indivíduo, comprometendo, inclusive, a sua capacidade de perceber essa degradação.
     Diante da improvável identificação dos sintomas da fadiga, pelo próprio indivíduo, compete ao planejador militar adotar medidas de controle que reduzam a sua probabilidade de ocorrência. Dentre as possíveis medidas de controle, as que apresentam melhor resultado são prover o REPOUSO ADEQUADO e assegurar que cada militar envolvido na atividade aérea tenha uma CARGA DE TRABALHO COMPATÍVEL com os padrões psicofisiológicos estabelecidos por ocasião do processo de seleção do pessoal.
     Evidentemente, diversas operações militares bem sucedidas, ao longo da história, foram levadas a bom termo sem que pudessem ser observadas essas duas precauções. A capacidade de auto-superação é um forte componente da identidade militar. Por outro lado, é um fato inquestionável que nenhuma auto-superação dura para sempre, ou seja, dez militares não poderão fazer, indefinidamente, o trabalho de vinte, sem que em algum momento ocorra uma sensível degradação no seu desempenho.
     Nenhum planejamento militar pode deixar de considerar tal fato, se almejar uma alta probabilidade de sucesso. Essa regra tanto vale para operações militares como para o dia-a-dia das unidades aéreas.
     Sob a perspectiva do Comando, um dos fatores que, com mais freqüência, leva à sobrecarga de trabalho é a falta de pessoal para completar a lotação da unidade. É importante que o Comando tenha em mente que, sob tais circunstâncias, a sobrecarga de trabalho não será uma fatalidade, mas a conseqüência da decisão de risco desse Comando de, apesar da falta de pessoal, continuar atendendo, indefinidamente, a uma demanda operativa que, em tese, seria compatível para a unidade com sua lotação completa.
     Nesse cenário, pode também contribuir para a ocorrência de um acidente, a ineficácia das medidas de controle implementadas pelo Comando para a identificação dos sintomas iniciais da fadiga do seu pessoal.
     Por sua vez, no nível dos Comandos de Força, existe, freqüentemente, uma cultura organizacional que valoriza Comandantes que não incluem, entre os seus fatores de planejamento, a prevenção à fadiga do seu pessoal. Tal cultura, que privilegia resultados à curto prazo, deve ser empregada com parcimônia, uma vez que a história contém diversos exemplos de insucessos militares decorrentes de se desconsiderar os efeitos, a longo prazo, de decisões táticas que visavam a um objetivo mais imediato.
     Analisando as conclusões das investigações de acidentes e incidentes aeronáuticos e ocorrências de solo da Marinha, das duas últimas décadas, foi possível identificar o cansaço ou fadiga do pessoal, como fator contribuinte associado ao erro humano, em uma relevante parcela dessas investigações.
     A simples referência ao cansaço ou à fadiga, como fatores contribuintes, já revela uma cultura organizacional que trata tais fatores como um tipo de fatalidade. Ora, se eu considero o cansaço como um fator contribuinte, a correspondente recomendação de segurança deveria se contrapor a essa característica do ser humano, qual seja, a de se cansar quando submetido a uma sobrecarga de trabalho. Se a recomendação de segurança formulada não foi “solicitar a Deus uma modificação no projeto do ser humano, de forma que ele não se canse”, então foi porque o verdadeiro fator contribuinte não foi o cansaço, mas as circunstâncias que permitiram que ele se instalasse e não fosse detectado a tempo de prevenir o erro humano que veio a contribuir para o acidente.
     A prevenção à fadiga não deve se limitar aos aeronavegantes. Como piloto, não me parece uma idéia muito agradável guarnecer minha aeronave, depois de uma boa noite de sono, sabendo que o mecânico que instalou os parafusos de fixação do motor, por mais abnegado e motivado para a carreira que seja, virou a noite trabalhando sem o repouso nem a alimentação adequados.
     Como idéia final, fica a de que o ser humano tem limites, os quais variam muito pouco em função das especificidades dos processos de seleção. A capacidade de operar nesses limites, ou além deles, sem incorrer numa maior quantidade de falhas, só pode figurar como fator de planejamento em operações para as quais seja aceitável um elevado nível risco.
     Considerando-se, em face dos motivos já apresentados, que o próprio militar é a pessoa menos indicada para identificar a proximidade desses limites, competem à SUPERVISÃO, em todos os níveis, as ações que possibilitarão a prevenção às falhas decorrentes da fadiga. 

     "Autor desconhecido."
      
     Texto utilizado como introdução em reunião de Segurança Operacional para abordagem do assunto de Fadiga, em janeiro de 2010. Solicitamos aos leitores que conheçam as informações de autoria que nos informem para a devida referência.
      

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